O epílogo de um sistema em desmantêlo crônico: A legitimidade da ‘democracia’ capitalista se baseava na premissa de que os Estados eram capazes de intervir nos mercados e corrigir seus resultados, em favor dos cidadãos; hoje, as dúvidas sobre a compatibilidade entre uma economia capitalista e um sistema democrático voltaram com força total.
Me parece que apesar dele não explicitar isso no texto, o que o prof. Streeck chama de “Capitalismo” é um somatório do meio de produção alienado dos produtores (baseado na propriedade privada dos meios de produção e na produção e comercialização de mercadorias na base de trabalho assalariado) e uma ordem sistêmica coesa em torno dele. Assim, o que ele vê como “
O fim do capitalismo” seria o desmantêlo dessa ordem relativa num cenário de caos sistêmico, onde as peças tenderiam a não ‘se encaixar’ mais, marcado por aspectos como megaexploração da mão de obra, precarização e falta de segurança generalizada, violência, banditismo, fundamentalismo religioso e identitário, fascismo, etc –
mas ainda mantendo a extração de mais-valia e multiplicação do capital como fundamentos de cada uma dessas formações sociais menos articuladas. Portanto, o prof. Streeck não trata neste artigo de um fim para o modo de produção capitalista.
2) É claro que o caminho delineado no artigo abaixo não é o único possível. Aqui n’O Minhocário há vários artigos tratando de possibilidades para o nosso futuro em comum, principalmente envolvendo o potencial de avanços tecnológicos recentes em robótica e inteligência artificial e seu possível impacto sobre o emprego e o tempo livre da população. Ver principalmente os artigos nas categorias ‘
O próprio texto , ele considera que o potencial para avanços imensos em produtividade nessas áreas (juntamente da liberação de tempo livre com qualidade de vida para a maioria da população) não significa que eles serão adotados, principalmente por que o baixo custo da mão de obra global sob o neoliberalismo torna bem mais confortável para os capitalistas manter os métodos de produção baseados em empregos precarizados.
Como citado acima, é justamente a luta dos trabalhadores por melhores condições de trabalho, tempo de jornada e salários que tende a impulsionar a busca capitalista por mais automação. No caso de termos tais avanços, podemos refletir sobre outras possibilidades de organização política e social, como em ‘ também de Peter Frase.AnúnciosDENUNCIAR ESTE ANÚNCIO
3) De qualquer maneira, me parece gigantesca a importância do artigo abaixo em delinear as principais tendências destrutivas atuais e suas contradições, a improbabilidade de soluções dentro dos marcos políticos-econômicos-sociais atuais, e o potencial para um desmantelo sistêmico da ordem capitalista atual à partir delas, mesmo na ausência de uma alternativa mais racional e humana para substituí-la.
Me parece que não faltam sinais de que este pode ser um caminho mais provável à frente, mantidas as direções atuais da ordem neoliberal. Incluí no final um trecho de um outro artigo do prof. Streeck (‘Do Futuro Sombrio do Capitalismo’) para ilustrar como a sociabilidade neoliberal e suas contradições atuais podem dar sinais para imaginarmos o que tende a ser o resultado de sua desordem interna.
]Mais do que em qualquer momento desde o fim da Segunda Guerra Mundial,
há hoje em dia um sentimento generalizado de que o capitalismo está em estado crítico.
Em retrospectiva, a crise de 2008 foi apenas o mais recente de uma longa sequência de desarranjos políticos e econômicos iniciada em meados da década de 70, com o fim da prosperidade do pós-guerra. Cada crise sucessiva mostrou-se mais grave do que a anterior, alastrando-se mais ampla e rapidamente por toda a economia global, cada vez mais interligada.
O surto de inflação dos anos 70 foi seguido pelo aumento da dívida pública nos anos 80, e o ajuste fiscal dos anos 90 se fez acompanhar por um acentuado aumento da dívida do setor privado. 2
Já faz quatro décadas que o desequilíbrio tem sido mais ou menos a condição normal do mundo industrial ‘avançado’, tanto em nível nacional como global.Com o tempo, as crises do modelo do pós-guerra nos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)
Se tornaram tão recorrentes que não são mais vistas como meramente econômicas; elas resultaram na redescoberta da antiga noção de “sociedade capitalista” – do capitalismo como uma ordem social e um modo de vida que depende visceralmente do progresso ininterrupto da acumulação de capital privado.
O crescimento constante, a moeda estável e um mínimo de igualdade social, disseminando alguns benefícios do sistema para os que não têm capital, por muito tempo foram considerados pré-requisitos para uma economia política capitalista conseguir a legitimidade de que precisa.
Nesse sentido, o mais alarmante é que as tendências críticas mencionadas podem estar se reforçando mutuamente.
Crescem os indícios de que o aumento da desigualdade pode ser um dos fatores do declínio do crescimento, pois a desigualdade trava as melhorias na produtividade e também enfraquece a demanda. O baixo crescimento, por sua vez, reforça a desigualdade ao intensificar a disputa pelos recursos – o chamado conflito distributivo –, tornando mais custosas aos ricos as concessões aos pobres, e fazendo com que os primeiros insistam mais do que nunca na estrita observância do “Efeito Mateus” que rege os mercados livres: “Ao que tem muito, mais lhe será dado e ele terá em abundância; mas ao que não tem, até mesmo o pouco que lhe resta lhe será tirado.”
Além disso, o endividamento crescente, ao mesmo tempo que não consegue deter a redução do crescimento econômico, torna-se mais um componente da desigualdade devido às mudanças estruturais associadas à financeirização da economia – financeirização esta, no entanto, que visava compensar os assalariados e consumidores pelo aumento da desigualdade de renda causada pela estagnação dos salários e pelos cortes nos serviços públicos.Isso que parece ser um círculo vicioso de tendências nocivas pode continuar para sempre?
Ou existem forças contrárias capazes de romper esse círculo? E o que acontecerá se se essas forças contrárias não se materializarem, como assistimos há quase quatro décadas?Os historiadores nos informam que as crises não são uma novidade para o capitalismo, e podem até ser necessárias para sua saúde em longo prazo. Mas eles estão falando de movimentos cíclicos ou choques aleatórios, após os quais as economias podem conseguir um novo estado de equilíbrio, pelo menos temporário.
O que estamos vendo, porém, parece em retrospecto ser um processo contínuo de decadência gradual, lento mas aparentemente inexorável. Recuperar-se de um processo de purificação [Reinigungskrise, em alemão] eventual é uma coisa; interromper o encadeamento de tendências de longo prazo entrelaçadas é outra bem diferente.
Admitindo que um crescimento cada vez menor, uma desigualdade cada vez maior e o endividamento sempre crescente não sejam sustentáveis indefinidamente – e podem, juntos, resultar numa crise de natureza sistêmica, cujas características temos dificuldade de imaginar –, será que podemos vislumbrar sinais de uma recuperação iminente?
Outra Solução Temporária
Aqui as notícias não são boas. Seis anos se passaram desde 2008, até aqui o auge dessa sequência de crises do pós-guerra. Enquanto a lembrança do abismo ainda estava fresca na memória, foram muitas as demandas e planos por “reformas” para evitar nova recaída. Conferências internacionais e reuniões de cúpula de todo tipo se sucederam, mas meia década depois quase nada resultou desses encontros. Enquanto isso, o setor financeiro, berço do desastre, apresentou uma recuperação completa: lucros, dividendos, salários e bônus para os executivos retornaram ao ponto em que estavam, enquanto uma regulação mais estrita ficou atolada em negociações internacionais e lobby doméstico.
O governos, sobretudo o dos Estados Unidos, continuaram firmemente sob o controle das indústrias de fazer dinheiro. Estas, por sua vez, estão sendo generosamente abastecidas de dinheiro barato, criado a partir do nada, para benefício delas, por seus amigos nos bancos centrais – eminente entre eles o antigo homem do Goldman Sachs, Mario Draghi, no comando do Banco Central Europeu; elas então acumulam esse dinheiro, ou investem em dívida pública.
O crescimento continua anêmico, assim como os mercados de trabalho; a emissão sem precedentes de dinheiro não conseguiu alavancar a economia; e a desigualdade está alcançando níveis cada vez mais impressionantes, já que o parco crescimento tem sido apropriado pelo 1% mais rico – e a parte do leão por uma pequena fração destes.
Parece haver poucas razões para ser otimista. Já faz algum tempo que o capitalismo nos países ricos vem se mantendo por meio de injeções generosas de dinheiro sem lastro, sob uma política de expansão monetária cujos arquitetos sabem, melhor do que ninguém, que não pode continuar para sempre.Várias tentativas foram feitas em 2013 para largar o vício, no Japão e nos Estados Unidos, mas, quando as Bolsas despencaram em resposta à possibilidade de redução gradual do relaxamento monetário, as diligências foram engavetadas por mais um tempo.
Em meados de junho último, o Banco de Compensações Internacionais (BIS), na Basileia, Suíça – a mãe de todos os bancos centrais –, declarou que o relaxamento monetário precisava chegar ao fim. Em seu relatório anual, o banco apontou que os bancos centrais, reagindo à crise e à lenta recuperação, expandiram seus balanços patrimoniais, “que estão agora coletivamente em cerca de três vezes seus níveis anteriores à crise – e crescendo”.
Embora isso tenha sido necessário para “evitar o colapso financeiro”, agora era preciso “fazer com que as economias ainda fracas voltem a um crescimento forte e sustentável”. Isso, no entanto, estava além das capacidades dos bancos centrais, que:“… não podem implementar as reformas estruturais necessárias para fazer com que as economias retomem o caminho do crescimento real que as autoridades e seus públicos querem e esperam.
O que a ação dos bancos centrais conseguiu durante a recuperação foi comprar tempo. […] Mas esse tempo não foi bem empregado, já que os juros baixos contínuos e as políticas não convencionais favoreceram o adiamento da redução das dívidas do setor privado, o financiamento dos déficits dos governos, e a postergação das reformas necessárias na economia real e no sistema financeiro, por parte das autoridades. Afinal, o dinheiro barato torna mais fácil pedir emprestado do que economizar, mais fácil gastar do que tributar, mais fácil manter tudo como está do que mudar.”Mesmo o Federal Reserve, o banco central estadunidense, aparentemente tinha essa mesma opinião que deixou o cargo no começo deste ano.
No início do segundo semestre de 2013, o banco parecia, mais uma vez, sinalizar que a época do dinheiro fácil estava com os dias contados. Em setembro do ano passado, porém, o esperado retorno às taxas de juros mais altas foi novamente adiado porque “a economia” parecia menos “forte” do que se esperava. Os preços de ações subiram imediatamente por todo o mundo.
A verdadeira razão, é claro, pela qual é tão difícil retomar as políticas monetárias mais convencionais pode ser dita com mais liberdade por uma instituição internacional como o BIS do que um banco central nacional, politicamente mais exposto – pelo menos atualmente.
Nas atuais circunstâncias, a única alternativa à sustentação do capitalismo por meio de injeções ilimitadas de dinheiro é tentar reanimá-lo por meio de reformas econômicas neoliberais, como resume bem o segundo tópico do Relatório Anual do BIS 2012-13: “Aumentar a flexibilidade: uma chave para o crescimento.”Em outras palavras, um remédio amargo para muitos, combinado com maiores incentivos para poucos.
Um Problema Com a Democracia
É aqui que a discussão sobre a crise e o futuro do capitalismo moderno deve se voltar para a política democrática. O capitalismo e a democracia por muito tempo foram considerados adversários, até que os arranjos do pós-guerra pareceram reconciliá-los.
Já bem entrado o século XX, os detentores do capital ainda temiam que as maiorias democráticas fossem abolir a propriedade privada, enquanto os trabalhadores e suas organizações receavam que os capitalistas financiassem recaídas autoritárias em defesa de seus privilégios.Só na Guerra Fria o capitalismo e a democracia passaram a parerecer alinhados, pois o progresso econômico permitiu que o grosso da classe trabalhadora aceitasse um regime de livre mercado e propriedade privada – o que, por sua vez fez parecer que a liberdade democrática era inseparável, e que de fato dependia, de liberdade para os mercados e para o lucro. Hoje, porém, as dúvidas sobre a compatibilidade entre uma economia capitalista e um sistema político democrático voltaram com força total.
Entre as pessoas comuns, há agora um sentimento disseminado de que a política não pode mais fazer diferença em suas vidas, como refletido nas percepções comuns de impasse, incompetência e corrupção entre uma classe política que parece ser cada vez mais fechada em si mesma e servindo a si mesma – unida na afirmação de que “não há alternativa” para ela e suas políticas.
Daí a queda na participação eleitoral combinada à alta volatilidade do eleitorado, produzindo resultados eleitorais cada vez mais fragmentados – devido à ascensão de partidos “populistas” de protesto – e a instabilidade generalizada dos governos.
A legitimidade da democracia no pós-guerra se baseava na premissa de que os Estados eram capazes de intervir nos mercados e corrigir seus resultados, no interesse dos cidadãos.
Décadas de desigualdade crescente – bem como a impotência dos governos antes, durante e depois da crise de 2008 – lançaram dúvidas sobre essa ideia. Em resposta a sua crescente irrelevância numa economia de mercado global, governos e partidos políticos nas democracias da OCDE assistiram à transformação da “luta de classes democrática” num circo de mídia, num entretenimento pós-democrático. Enquanto isso, a passagem da economia política capitalista, do keynesianismo do pós-guerra para o hayekianismo neoliberal, transcorreu sem dificuldades:
A fórmula política para o crescimento econômico por meio da redistribuição de cima para baixo foi substituída por outra que espera promover o crescimento por meio da redistribuição de baixo para cima.
A democracia igualitária, antes considerada economicamente produtiva sob o keynesianismo, passou a ser vista como um empecilho à eficiência sob o hayekianismo contemporâneo, onde mercados protegidos contra distorções geradas por políticas redistributivas – e as vantagens cumulativas que eles implicariam – trariam mais crescimento.
Um tópico-chave da retórica antidemocrática vigente é a crise fiscal do Estado contemporâneo, tal como vista no aumento espantoso da dívida pública desde a década de 70 Esse aumento é atribuído a uma maioria do eleitorado que viveria acima das suas posses, explorando o “fundo comum” de suas sociedades, e a políticos oportunistas que comprariam o apoio de eleitores míopes com um dinheiro que não têm.