Nesse cenário, não há espaço para “milagre lulista”, assim como não houve para o retorno do peronismo ao governo argentino. Estamos longe daquelas condições econômicas da década de 2000, em que o superciclo das matérias primas e o eldorado do comércio mundial com a avidez chinesa banhavam as costas brasileiras de dólares baratos. Estas condições favoráveis, que permitiram aos governos de Lula (especialmente em seu segundo mandato) fazer certas concessões às massas, enquanto desabava riquezas sobre os bolsos dos empresários e financistas, não existem mais. A crise da Evergrande na China, parte do robusto setor imobiliário que devorava as exportações brasileiras de minério de ferro, revela o tamanho da fragilidade da economia brasileira, sacudida até os alicerces pelas modificações no padrão de crescimento do gigante asiático (ainda que mantenha suas importações de soja, por exemplo). As reformas de Bolsonaro e Guedes aprofundaram ainda mais a submissão, decadência e dependência da atrasada economia brasileira, algo difícil de se desfazer na estrutura do sistema de Estados capitalista. Um fenômeno de aprofundamento do atraso dependente que, sem levarmos em conta as diferenças de magnitude, que também verificamos com a herança de Mauricio Macri na Argentina.
Não é apenas na economia que encontramos paralelos na sina dos governos de Brasília e Buenos Aires. Se tomarmos a política como economia concentrada (Lênin dixit), é forçoso admitir que as dificuldades econômicas latino-americanas vão erodindo qualquer margem de manobra política para fenômenos “pós-neoliberais” do início do século, que puderam passivizar e desorganizar a classe trabalhadora mediante concessões limitadas, ao mesmo tempo em que mantinham de pé os pilares do neoliberalismo (a precarização do trabalho, privatizações dos serviços públicos, a penetração das multinacionais, a reprimarização exportadora com especialização em commodities, a dependência do capital financeiro internacional). O lulismo significou essa combinação no Brasil, e à sua maneira específica traduziu para o país o que se verificava com o kirchnerismo na Argentina, com o chavismo na Venezuela, o evomoralismo na Bolívia, apoiados todos sobre as bases de economias capitalistas que serviam de apêndices às grandes potências.
Em uma carta de debate com o Partido Socialista Independente (OSP) da Holanda, em 1934, Trótski recordava que “sem reformas não há reformismo, e sem capitalismo próspero não há reformas. A direita reformista se torna anti-reformista no sentido de que ajuda, direta ou indiretamente, a burguesia a esmagar as velhas conquistas da classe operária”. No cenário da crise mundial, o “reformismo sem reformas” é a sina daquelas forças políticas que se afiguravam como “progressistas” ou “pós-neoliberais”. Sem poder reeditar as condições da década de 2000, a ideia de que um retorno de Lula ao governo precisa ser despida de toda ilusão. Um PT na presidência em 2023 não apenas estaria longe de reverter a massa de ataques anti-operários e anti-populares realizados desde 2016; tomando o alerta de Trótski à luz da situação mundial, implicaria também ajudar a burguesia a eliminar as velhas conquistas da classe operária.
A situação da Argentina é sintomática para “levantar as cortinas” daquilo que reservaria ao Brasil um eventual triunfo de Lula.
Alberto Fernández e Cristina Kirchner montaram uma coalizão de governo peronista/kirchnerista a fim de derrotar eleitoralmente o então presidente Maurício Macri no pleito de 2019. A Frente de Todos, assim denominada a coalizão de albertistas e kirchneristas, tinha a seu favor muito mais a aversão de massas à nefasta herança da direita neoliberal de Macri que um suposto encantamento pelo programa peronista. Macri havia aprofundado a destruição dos serviços públicos, oriundos da era neoliberal de Carlos Menem (1989-99) e Fernando De La Rúa (1999-2001), passando pelo breve governo de Eduardo Duhalde (2001-2002), e que continuaram na “década kirchnerista”. O kirchnerismo, com Nestor e Cristina, beneficiando-se do boom das commodities e da bonança da economia internacional, tracionada pela simbiose entre Estados Unidos e China, mesclaram certas concessões (com a contenção do movimento operário pelas burocracias sindicais), preservando as modificações estruturais conquistados pelo neoliberalismo contra a classe operária. O ódio a Macri, que aplicou duras contra-reformas, como a das aposentadorias em 2017 (não podendo aplicar uma reforma trabalhista pela grande luta operária de Pepsico), privatizou e entregou ramos inteiros da economia ao capital estrangeiro, não deixava de levar em conta, em camadas consideráveis, o papel do kirchnerismo na manutenção do atraso e dependência da Argentina. Assim se fizeram as coordenadas das eleições de 2019, com o triunfo de Alberto/Cristina.
A coalizão de governo havia feito campanha “para tirar Macri”, usando bordões como “primeiro os aposentados, depois os bancos”, ou “colocar dinheiro no bolso na população”. O objetivo era aveludar a figura de um governo que “faria o oposto” daquele chefiado pelo empresário argentino entre 2015-19. Mas, com o desenrolar do governo da Frente de Todos, permeado pela pandemia, o que se viu foi “em primeiro lugar, os banqueiros”, e os principais amigos da coalizão peronista/kirchnerista não foram os aposentados, e sim Kristalina Georgieva e o FMI. O dueto Fernández-Fernández – dito de passagem, considerados “grandes estadistas” por stalinistas do PCB e da UP – aplicaram ajustes contra os aposentados. Eliminou-se do orçamento de 2021 o chamado IFE (Ingreso Familiar de Emergencia), e se viu reduzido o salário dos trabalhadores do setor público por ordens de Martín Guzmán, o “Paulo Guedes” argentino. Segundo Pozzo, metade dos trabalhadores da Argentina em 2020 ganhou 17% menos do que o necessário para atender as necessidades básicas de uma família de quatro pessoas. Um informe da Oficina Orçamentária do Congresso argentino revelou que as despesas primárias da Administração Nacional caíram 7,3% ano a ano em termos reais, e que “esta variação se explica principalmente pela queda nas pensões e aposentadorias (9,6 % ao ano) e nos salários públicos (5,0 % ao ano)”. O acordo com o FMI, em troca das habituais receitas de ajustes e reformas neoliberais, mostrou um governo incomodamente semelhante ao de Macri. Como se não fosse o bastante, registros oficiais mostram que os gastos do governo com programas sociais Voltarem a falar sobre isso lembre se naquela época foi o início desse programa que não deu solução somente serviu pra o povo sentir o poder do assistencialismo