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04 Sep
COMO DECIFRAR O ENIGMA DA ULTRADIREITA

Para decifrar o enigma da ultradireita

Desigualdade e frustrações deslocaram o eixo da política para o campo dos valores – onde opera uma aliança entre interesses financeiros, preconceitos de gênero e religião. Hipótese: esquerda pode (e precisa!) disputar este território

analisa precisamente como se formou esta convergência de diversas dimensões do cotidiano da população, aliando religião, política, polícia e criminalidade numa nova “costura” que articula as comunidades, gerando novos sistemas de governança. 

  1. A religião e a sexualidade, o controle do comportamento íntimo das famílias, passam a desempenhar um papel poderoso. Quando elegemos um político, teoricamente se trata de assegurar que o setor público administre os investimentos necessários na educação, na saúde, nas infraestruturas, na promoção de empregos e semelhante. São os “programas” que se apresentam para as eleições. 

  2. Em vez disso, as pessoas irão votar no que se apresenta como costumes, como se os políticos devessem tratar de como e para quem rezamos, como organizamos as nossas famílias, como educamos nossos filhos.

  3.  Deus, Pátria, Família já era o mote da ditadura de Salazar em Portugal, um século atrás. E como funciona. Não busca a racionalidade, busca as emoções. 

  4. O livro que queria aqui apresentar foca essas dimensões no plano internacional. 

  5. Na Europa tão cultural e civilizada, enfrenta-se essa convergência da luta anti-gênero (leia-se controle da sexualidade das mulheres), da promoção da religiosidade (como se estivéssemos elegendo pastores), do uso das mídias sociais personalizadas (baseadas no uso de informações privadas das pessoas), e de pretensos valores “tradicionais”.

  6.  Nos Estados Unidos as religiões se transformaram já há tempos em feudos de poder, com impressionante convergência entre valores retrógrados e as mídias mais avançadas, também navegando no mundo de frustrações geradas pela desigualdade e estagnação na base da sociedade. 

  7. Os mais pobres nas mãos dos que mais reproduzem a pobreza. Duas polonesas, Agnieszka Graff e Elzbieta Korolczuk realizaram uma pesquisa de impressionante riqueza sobre justamente como se articulam essas diversas dimensões da sociedade, com poderoso impacto político que se enraíza na intimidade de como rezamos, de como nos relacionamos com a família, mas também de como votamos. 

  8. O populismo político de direita é aqui visto como construção inovadora, que termina se articulando com as forças econômicas das grandes corporações, como no caso das Koch Industries nos Estados Unidos, justificando e assegurando apoio político da base social mais explorada para o sistema tecnologicamente mais avançado e explorador. 

  9. A análise nos ajuda a entender como se construiu esse paradoxo político, por meio da pretensa superioridade moral, com uso não de propostas de soluções concretas de governança, mas sim de grandes acenos à família, uso da bandeira, conceito de austeridade na política, e de controle comportamental, em particular das mulheres. 

  10. As autoras analisam o caso da Polônia, que acaba de sair de 7 anos de um governo religioso fundamentalista que desestruturou as políticas públicas, e também os casos de Donald Trump nos Estados Unidos, de Orban na Hungria, bem como dos movimentos semelhantes na Itália, na França, na Inglaterra e inclusive no Brasil. 

  11. A força do livro resulta em  grande parte da profundidade da análise: as autoras participaram como observadoras das grandes reuniões internacionais dos movimentos de extrema direita populista nos diferentes países e em diferentes épocas, permitindo justamente a compreensão de como o uso das religiões, dos movimentos anti-gender, em particular com a questão do aborto, dos interesses financeiros e dos interesses político-partidários convergiram para a formação do poderoso movimento populista de extrema direita que se tornou tão poderoso no mundo. 

  12. Tive uma reunião com uma das autoras, Elzbieta Korolczuk, em Varsóvia, em julho deste ano, ela me deu a versão polonesa do livro, que terminei lendo no avião. Impressionante a riqueza das análises. 

  13. Ao comunicar-lhe por e-mail o meu entusiasmo, Korolczuk, que é professora na Suécia, me mandou o link da versão original em inglês, disponível gratuitamente online, opção que tantos autores e editores estão começando a adotar: não substitui a venda dos livros impressos, pelo contrário, estimula, como constato com meus próprios livros, todos disponíveis no meu site Dowbor.org e nas livrarias. Tempo de nos modernizarmos

  14. . Uso moderno e construtivo das tecnologias mais avançadas, para denunciar, neste caso, o uso dessas tecnologias para nos empurrar para o mais profundo obscurantismo político e comportamental.

  15.  O problema não está nas tecnologias, e sim no para que são usadas, como é o caso em particular da inteligência artificial. Hoje o poder das plataformas da comunicação, o dinheiro dos gigantes financeiros, e o controle dos nossos comportamentos íntimos geram uma nova ameaça, e se tornaram dominantes. Estamos na era da inteligência artificial manipulando a profundidade das nossas emoções, das nossas dimensões irracionais, buscando nos trancar em regimes obscurantistas. 

  16. O ponto de partida das autoras é a própria Polônia, onde o tradicionalismo religioso e o controle das políticas feministas, o “anti-gender” como é qualificado no plano mundial, foram apropriados pelo partido PIS (Prawo i Sprawiedliwosc:

  17.  Direito e Justiça) para eleger um governo fundamentalista religioso de extrema direita.

  18.  Quando chegaram ao extremo de proibir e criminalizar o aborto até em casos de estupro e de malformação do feto, houve uma reação impressionante: meio milhão de mulheres desceram às ruas, vestidas de preto, e com cartazes radicais em defesa dos direitos das mulheres. 

  19. A causa do aborto, tratada com tantos cuidados e prudência em diversos países, aqui foi escancarada, e transformada em movimento político poderoso, contribuindo fortemente, inclusive, para a queda do PIS em 2023. Caiu o governo, mas o enraizamento do discurso populista, a propagação da sua falsa superioridade moral, e a sua articulação com o populismo político continuam muito presentes na sociedade, em particular no meio rural e nas camadas mais pobres. 

  20. Segundo as autoras, 

  21. “As campanhas antigênero se alimentam de sentimentos religiosos e empregam discursos moralizantes, mas sua disseminação só pode ser devidamente compreendida no contexto da ascensão de forças políticas de direita que buscam meios ideológicos e afetivos para ganhar hegemonia.”(164) Trata-se de manipulação de sentimentos, no sentido mais direto.

  22.  “A retórica anti-gênero funciona porque reorienta a raiva coletiva para longe das questões econômicas estruturais e para as morais. 

  23. No processo, o anti-generismo confere aos sujeitos a memória de uma vergonha imaginária e a promessa de uma nova dignidade; oferece satisfação moral (nossos inimigos são maus, mas miseráveis),

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