As funções do Estado, o princípio da legalidade e a separação de poderes no Estado Democrático de Direito
As funções do Estado, o princípio da legalidade e a separação de poderes no Estado Democrático de Direito
22 Apr
As funções do Estado, o princípio da legalidade e a separação de poderes no Estado Democrático de Direito
Analisam-se os limites da competência reguladora do Poder Executivo, exercida pelas agências reguladoras, e os possíveis conflitos entre os regulamentos e o princípio da legalidade.
As funções do Estado, o princípio da legalidade e a separação de poderes no Estado Democrático de Direito
por Jose Domingos Rodrigues Lopes
Introdução
Este artigo aborda as distintas funções do Estado (função administrativa, função legislativa, função judicial e função de governo) e seu enquadramento no arranjo jurídico-institucional dos poderes arquitetado pela Constituição de 1988.Embora a teoria da separação dos poderes tenha imaginado a existência de estruturas orgânicas distintas e separadas, no âmbito do Estado, para o exercício de cada uma dessas funções públicas, é preciso esclarecer que essa divisão dos poderes não implica uma distinção absoluta, já que é sabido que qualquer um dos poderes exerce, em certa medida, as funções legislativas, executivas ou judicantes.
Ademais, o modelo constitucional brasileiro contempla variantes que não se adéquam perfeitamente a essa visão tripartida dos poderes, como por exemplo, os Tribunais de Contas e o Ministério Público, os quais exercem atividade de controle sobre os demais poderes.
Por outro lado, a teoria da separação de poderes também é calcada da noção de checks and balances, que justifica existência de interferências recíprocas entre os poderes, de forma a evitar o exercício desmedido e descontrolado por parte de cada um deles
.Discute também os problemas de hiperprodução normativa por parte do Poder Executivo e as dificuldades do Poder Legislativo em responder a demandas imediatas e técnicas da sociedade, realçando os impactos que essa realidade social provoca sobre a concepção clássica do princípio da separação de poderes.
Por fim, analisa os limites da competência regulatória do Poder Executivo em face do princípio da legalidade (art. 5, inc. II, c/c art. 37, caput, da Constituição Federal), com destaque para a atividade regulatória das Agências Reguladoras, relacionando tais contornos com uma feição contemporânea do princípio da legalidade.
1 – As distintas funções do Estado, sua divisão nas estruturas orgânicas dos poderes e os mecanismos de freios e contrapesos existentes no ordenamento constitucional brasileiro.
A teoria da tripartição de poderes realça a noção de separação de poderes graças à influência de Montesquieu que fala em uma absoluta separação dos poderes. No entanto, ela também é calcada da noção de checks and balances, introduzida pelo constitucionalismo norte-americano.Segundo a teoria da separação de poderes, o Estado, na atuação de seu poder, exerce três funções distintas, quais sejam, a função legislativa, a função executiva e a função jurisdicional.
A função legislativa do Estado corresponde à fixação, em lei, da vontade dos representantes do povo, prescrevendo comandos jurídicos em termos gerais e abstratos, aplicáveis a todos os cidadãos de uma determinada comunidade política, conforme definição do texto-base. Já as funções jurisdicional e administrativa corresponderiam à aplicação da legislação aos concretos.
No entanto, a função jurisdicional pressuporia um conflito de interesses ou litígio, com a atuação do Estado-Juiz como terceiro imparcial e inerte, uma vez que atua apenas após provocação pelos interessados no conflito, que ditaria o direito do caso concreto. Por sua vez, a função administrativa seria uma função de aplicação do direito a casos concretos em que a Administração é uma das partes interessadas, com capacidade de agir de ofício, sem necessária imparcialidade, cujos atos poderiam ser revistos pelo órgão encarregado da função jurisdicional, desde que provocado pelo interessado (ACUNHA, 2013, p. 21)
.Ademais, alguns autores mencionam a existência da chamada função de governo1, que seria aquela relacionada com as grandes questões políticas, tanto internas quanto externas, em termos de fixação em grandes linhas das ações públicas, enquanto que função administrativa seria aquela relacionada com os assuntos mais correntes, tais como a prestação de serviços públicos quanto à coleta de lixo, ao fornecimento de energia elétrica etc.
Tanto a função administrativa quanto a função de governo estão concentradas no âmbito do Poder Executivo, o que torna a tarefa de diferenciá-las uma questão bastante complexa.Idealmente, a teoria da separação dos poderes imaginou a existência de estruturas orgânicas distintas e separadas, no âmbito do Estado, para o exercício de cada uma das funções públicas.
Tais estruturas orgânicas correspondem ao que se convencionou chamar de Poder Executivo, Poder Legislativo e Poder Judiciário, aos quais seria atribuído o exercício das funções típicas de administrar, legislar e julgar, respectivamente (ACUNHA, 2013, p. 11-12)
.Entretanto, é preciso esclarecer os termos dessa divisão, pois afirmar a divisão dos poderes não implica uma distinção absoluta, já que é sabido que qualquer um dos poderes exerce, em certa medida, as funções legislativas, executivas ou judicantes.
Assim, por exemplo, no que se refere à função legislativa, a Administração exerce o poder regulamentar (art. 84, IV, CF/88) e até normativo primário, por intermédio das Medidas Provisórias (art. 62, CF/88) e quanto à função judicante, considere-se o exemplo do procedimento administrativo disciplinar no âmbito da Administração Pública (art. 143 da Lei n. 8.112/93). Por outro lado, o Legislativo e o Judiciário exercem atividade administrativa quando, por exemplo, regulamentam temas como a organização de seus serviços e órgãos internos (arts. 51, IV, 52, XIII, e 96, I, alínea “b”, da Constituição Federal). Assim, o que se tem é o exercício de funções típicas e atípicas (não exclusivas).
Além disso, o sistema constitucional brasileiro contempla variantes que não se adéquam perfeitamente a essa visão tripartida dos poderes, em especial quando se trata do exercício de função administrativa, como por exemplo, os Tribunais de Contas e o Ministério Público, os quais exerceriam função tipicamente administrativa (ACUNHA, 2013, p. 22).Conforme indicado acima, é parte da teoria da separação de poderes também a existência de interferências de um poder sobre o outro, de forma a evitar seu exercício desmedido e descontrolado, mecanismo que, no Direito Constitucional Americano, foi convencionalmente chamado de checks and balances.
Assim, por exemplo, é dado ao Poder Executivo, no Brasil, interferir na atividade legislativa, pelos institutos da sanção e do veto (art. 66, CF/88), e na atividade judicante, por meio da indicação e da nomeação dos magistrados dos Tribunais Superiores, com respaldo do Senado Federal (art. 84, XIV, CF/88).Em contrapartida, o Poder Legislativo exerce sobre o Poder Executivo os seguintes mecanismos de fiscalização: aprovação das leis de diretrizes orçamentárias, do plano plurianual e do orçamento anual (art. 166, CF/88); a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial com o apoio do Tribunal de Contas (art. 70 e seguintes, CF/88); o processo e julgamento do Presidente da República, do Vice-Presidente da República e dos Ministros de Estado por crimes de responsabilidade (art. 52, I, CF/88) e o uso das Comissões Parlamentares de Inquérito (art. 58, parágrafo 3, CF/88). Por fim, o Poder Judiciário exerce o controle de legalidade e de constitucionalidade tanto sobre o Executivo quanto sobre o Legislativo.
2 - A relação crítica entre função legislativa, atuação dos Poderes Executivo e Judiciário e a especialização dos campos de conhecimento e seus impactos sobre a separação de poderes no Brasil.
Com o surgimento do Estado Social, as funções exercidas pelo Poder Público foram alargadas consideravelmente, tendo o Poder o Executivo assumido boa parte das novas atividades recentemente conquistadas pelo Estado.Juntamente com o Estado Social, observa-se a emergência da chamada sociedade técnica, acarretando o aumento gradativo da complexidade das questões sociais às quais o Estado é chamado a se pronunciar de forma célere e eficiente. A respeito do surgimento da sociedade técnica, assevera Clève (2000, p. 52):
Com a sociedade técnica, o tempo adquiriu velocidade. A sociedade passou a exigir respostas prontas e rápidas para questões não poucas vezes novas e particularizadas. Sem contar o fato de que os assuntos que ‘estão penetrando nas pautas estatais revestem-se cada vez mais de maior complexidade’. A administração vê-se compelida a socorrer-se do auxílio de especialistas que, em nome da objetividade ou infalibilidade da ciência ou da técnica, nem sempre estão dispostos a dialogar com os integrantes do Legislativo. Afinal, há uma radical oposição entre o discurso do tecnocrata, auxiliar do governo, e o jurista ou o político.
Esse aumento da complexidade da vida social acarreta a sobrecarga do Parlamento, de tal sorte que sua estrutura funcional não consegue elaborar o seu produto, a lei, de forma satisfatoriamente rápida, a fim de atender os anseios de uma nova consciência social que exige imediatismo, prontidão, nas respostas aos seus reclamos.