O de e excessão e a arma contra Países que foram destabilizados
Com a impossibilidade de se sustentarem juridicamente as atrocidades perpetradas pelos Estados de exceção clássicos presentes no século XX, a exemplo do nazismo alemão, fascismo italiano e das ditaduras militares instauradas na América Latina, entre outros modelos autoritários que existiram no período histórico referido, os campos de concentração e extermínio de corpos físicos indesejáveis passaram a ser substituídos no século XXI por uma construção que se opera no campo discursivo, muito mais sofisticado e de difícil constatação, mas que assumem uma potência altamente lesiva para quem a arma da manipulação legal é apontada: um tiro de arbitrariedades certeiro que destrói se não fisicamente, simbolicamente a existência do outro, o inimigo declarado, a quem é negada a condição de pessoa e os direitos a ela inerentes pela simples condição de sê-lo.
O mecanismo descrito acima tem sido adotado no Brasil na contemporaneidade pelo Sistema de Justiça com amplo apoio midiático e popular, cuja função precípua e indispensável é a de disseminar esta forma especial de construção discursiva de falseamento da realidade que não apenas legitima as práticas adotadas, como também acirra as disputas ideológicas na construção do ódio como política no seio social e resgatando a lógica binária do amigo/inimigo e da supressão ou morte simbólica dos indesejáveis.
Temos sistematicamente denunciado desde 2007 e mais recentemente em obra publicada em 20161 a ocorrência de “medidas de exceção no interior das sociedades democráticas” ou a presença de uma “governabilidade de exceção permanente”, cujas práticas ocorrem na atualidade sem a adoção da suspensão da ordem jurídica vigente, mas como técnica ocasional de governo em que há dois modelos de Estado convivendo simultânea e paralelamente: um Estado de direito formalmente democrático previsto na Constituição Federal e acessível apenas aos economicamente incluídos e politicamente convenientes e um Estado de exceção real presente nas práticas político-jurídicas adotadas contra os inimigos declarados pelos detentores do poder, que são escolhidos ao sabor das necessidades do momento para a manutenção do establishment.
Apresentaremos nesse artigo nossas reflexões mais recentes acerca das características político-econômicas como fenômeno mundial que criam o substrato ideal para instalação do que chamamos de “governabilidade de exceção permanente” para a população excluída (o inimigo pobre) e adoção de medidas de exceção com fim eminentemente político (o inimigo corrupto), por meio, principalmente, da subversão do sistema de persecução penal pelos atores envolvidos no Sistema de Justiça Criminal.
Nesta senda, apresentamos a política neoliberal e a transformação do capitalismo industrial em financeiro, com o consequente aumento da desigualdade social, como fatores que impõem uma governabilidade de exceção permanente contra a parcela excluída da sociedade e mecanismos adotados com finalidade política, dirigidos, sobretudo, aos governos e líderes de esquerda contrários aos interesses do mercado, propugnando-se uma verdadeira criminalização da política a fim de que o controle político seja realizado pelo poder econômico, numa prática muito efetiva de gestão dos indesejáveis.
Na perspectiva lógica da imposição de uma política neoliberal que se impõe no atual cenário político brasileiro, o poder político passa necessariamente a ser subjugado ao poder econômico, cujo sistema capitaneado pelo capital financeiro clama pelo autoritarismo e punitivismo estatal como instrumento de garantia das grandes operações do mercado e para conter a violência gerada pelo aumento da desigualdade social que resulta inexoravelmente desse modelo econômico excludente.
Desigualdade esta, aliás, que se agiganta como consequência intrínseca ao atual estágio do capitalismo que não mais depende da força de trabalho operária, indispensável na fase do capitalismo eminentemente industrial, mas do fetiche mercadológico e fantasmagórico que produz riqueza a partir da retroalimentação do próprio capital financeiro e da acumulação de bens concentrada nas mãos de meia dúzia de oligarquias familiares que detém o controle destes novos mecanismos especulativos, seja em mesas de negociações virtuais ou na imprensa, por exemplo, e do locus político para manter as engrenagens da estrutura de poder funcionando perfeitamente ao atendimento dos seus próprios interesses e gerando, nesse sentido, um contingente de pessoas descartáveis e marginalizadas, suscetível a toda sorte de violência e negação de sua condição de cidadania.
Se por um lado esse sistema de mercado demanda a presença de um Estado forte e dilatado, por outro, exige a redução, e até mesmo a suspensão, dos direitos dos indivíduos, apresentando-se, portanto, autoritário por excelência, desmistificando-se a ideia de um Estado mínimo associado ao modelo do capitalismo pós-industrial, pois, paradoxalmente, o mercado de capital de cariz eminentemente financeiro exige um Estado autoritário, máximo, a seu serviço.
Não à toa que países que adotaram o modelo neoliberal (a exemplo da Inglaterra de Margareth Tatcher e países latino-americanos que a partir da década de 90 adotaram a cartilha impositiva do Consenso de Washington, como Argentina, Brasil, Uruguai, Paraguai, Chile, Bolívia, Equador, Venezuela e Colômbia), aumentaram os custos estatais com o aparelho repressivo, superando os investimentos sociais do Estado de Bem Estar Social, caindo por terra a falaciosa promessa de redução de gastos públicos.
Essa apontada tendência à unificação dos poderes como mecanismo de manutenção dos privilégios do mercado de capital é, sem sombra de dúvida, a principal causa da ruptura democrática percebida nos últimos anos e que tem provocado o desmonte das conquistas sociais alcançadas nas últimas décadas de governos petistas, recolocando milhões de pessoas novamente na condição de pobreza extrema, conforme dados medidos pelo Sistema de Indicadores Sociais (SIS) e divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), com dois milhões a mais de pessoas retornando a essa condição de miserabilidade entre 2016 e 20172.
A separação entre poder econômico e poder político que marca a ascensão da democracia liberal é subvertida pela “racionalidade neoliberal” que avança como fenômeno globalizante a partir dos anos 80 do século passado, e, particularmente no Brasil, a partir dos anos 90.
Questões como encarceramento em massa, seletividade da punição criminal, desrespeito aos direitos e garantias penais e processuais penais, espetacularização e condenação midiática, hipernomia e apropriação privada da linguagem pelos aplicadores do direito e dos agentes como um todo que compõem o Sistema de Justiça Criminal (Poder Judiciário, Ministério Público, Polícia, etc.), são, grosso modo, os principais fenômenos observados nessa técnica de gestão dos indesejáveis dentre da lógica da política neoliberal.
A ampliação do direito penal como instrumento de controle social, flexibilizando ou mesmo subtraindo os direitos do acusado - ou daquele que é perseguido pela justiça penal -, ocorre em várias partes do mundo por diferentes razões.
Contudo, importante anotar que a política de encarceramento em massa adotada no âmbito do neoliberalismo a partir do início da década de 90 no Brasil, e que propiciou esse aumento desenfreado da população carcerária, não foi acompanhado da diminuição dos crimes considerados violentos nem tampouco da diminuição da sensação de insegurança. Com população de 726 mil presos e a terceira maior do mundo3, atrás apenas dos Estados Unidos e China, não vimos o índice de violência regredir, o que contraria o discurso do encarceramento e punitivismo como política de segurança pública eficaz contra o aumento da criminalidade.
Importante salientar que esses mecanismos que descrevemos como medidas de exceção adotadas concomitantemente na rotina democrática, sem suspensão da ordem jurídica vigente, operam-se de formas distintas nos contextos de países mais desenvolvidos, a exemplo da Europa e Estados Unidos, onde se tem, grosso modo, a edição de atos do Legislativo - por meio de normas gerais e abstratas - que fortalecem o Executivo, a exemplo das leis anti-terroristas, como o patrioct act e a admissão de um direito penal especial direcionado aos estrangeiros suspeitos de cometimento de supostos crimes de terrorismo atentatórios à segurança nacional.
Nos países de capitalismo periférico e desiguais da América Latina, as medidas de exceção são direcionadas ao inimigo interno, que pode ser tanto o bandido (parcela pobre, majoritariamente negra e marginalizada da sociedade), como o corrupto. Nesse último caso, por meio do Sistema de Justiça que atua a serviço dos interesses do mercado e opera para criminalizar lideranças de esquerda, a exemplo dos processos penais e prisões adotadas no contexto da Operação Lava-Jato e que mantem preso por meio de ilações e condutas não comprovadas o maior líder político da esquerda brasileira,