tempo do capitalismo industrial, um tema que fascinou de modo permanente os estudiosos do sistema foram suas crises. Karl Marx foi pioneiro também em explicá-las, ao apontar que elas originavam-se de uma contradição fundamental.
A produção de riquezas era cada vez mais socializada, à medida que a industrialização espraiava-se pelo mundo e incorporava novos contingentes de trabalhadores. Mas a apropriação dos bens produzidos mantinha-se privada e cada vez mais concentrada. Por isso, abria-se aos poucos um fosso entre o imenso volume de mercadorias produzidas e a incapacidade das sociedades para consumi-las. Em certo ponto, eclodia uma crise de superprodução. As fábricas e seu maquinário tornavam-se inúteis.
Era preciso destruir o capital existente – ou, fisicamente, por meio de guerras, ou com o advento de novas tecnologias, que exigissem o descarte e renovação das estruturas de produção anteriores.Em Resgatar a função social da economia, Ladislau Dowbor mostra que também esta dinâmica mudou, na era do tecno-rentismo contemporâneo.
As crises de superprodução persistem – como demonstra a “Grande Recessão” iniciada em 2008. Mas a elas sobrepõe-se um novo fenômeno, que o livro analisa em detalhes: o desperdício das estruturas de produção existentes. É algo que resulta da própria natureza do novo sistema.
Agora, como se viu, os lucros derivam em grande parte da criação artificial de escassez. Ou seja: para que uma minoria cada vez mais ínfima continue a concentrar riquezas, é preciso instalar catracas por toda a parte e impedir que a potência produtiva da sociedade se realize. As novas tecnologias permitem que o conhecimento mais avançado esteja disponível para todos. Mas o caso de um gênio precoce da programação e do ativismo digital – é emblemático. Ao programar um computador público
uma das principais universidades dos EUA, para baixar milhões de artigos científicos mantidos pela empresa JSTOR, que cobra pelo acesso, ele foi preso, implicado num processo que poderia resultar em 35 aos de cárcere e levado ao suicídio, aos 26 anos.A obsessão do novo sistema em restringir o desenvolvimento do Comum também pode ser observada em outros fenômenos, menos pontuais, mas igualmente grotescos. No Brasil, a Emenda Constitucional 95 proibiu o Estado de ampliar os investimentos sociais por duas décadas – ignorando a premência do combate à pobreza, a relevância dos serviços de saúde e educação e até o crescimento vegetativo da população.
Alegou-se “disciplina fiscal”. Mas não há nenhum limite ao desperdício de dinheiro público com o pagamento, pelo Estado, de juros (os mais altos do mundo) à oligarquia financeira.Porém, também aqui não se trata de uma jabuticaba brasileira.
O bloqueio à produção de vacinas contra a covid, em meio a uma pandemia, é ultrajante e exemplar. A partir de 2020, África do Sul, Índia e movimentos ligados à saúde pública em todo o mundo tentaram obter, da Organização Mundial do Comércio (OMC), licença provisória para produzir os imunizantes enquanto durasse a emergência sanitária. Em janeiro de 2022, um estudo demonstrou que havia na Ásia,
América Latina e África preparados para produzir as vacinas – num momento em que, no Sul global, 92% da população estava desprotegida. Mas o que teria sido uma oportunidade, na época do capitalismo industrial, foi visto como ameaça. A OMC mantém até hoje a proibição.
No capítulo III de Resgatar a função social da economia, Dowbor lança um olhar sobre o imenso desaproveitamento de capacidades produtivas que caracteriza o novo modo de captura da riqueza coletiva.
O mais dramático é o do trabalho. “Um sistema cuja principal forma de se apropriar do excedente social se dá por meio de rentismo improdutivo precisa cada vez menos de força de trabalho para ter quem explorar”, resume o autor. E aponta como exemplo o Brasil.
Das 106 milhões de pessoas que compõem a população em idade de trabalhar, apenas 44 milhões (42%) têm emprego formal na iniciativa privada (33 milhões) ou no setor público (11 milhões). Enquanto isso, há 15 milhões de desempregados e 40 milhões que “se viram” em ocupações informais, na maioria das vezes precárias.Não se trata apenas de percentuais. A era em que o conhecimento tornou-se o principal fator de produção deveria ser a do trabalho mais qualificado, menos penoso e realizado em jornadas mais leves.
Mas a ultraconcentração da riqueza social nas mãos de uma oligarquia mínima produz o efeito oposto. Multiplicam-se os trabalhos exaustivos e degradantes, as jornadas que se prolongam após o expediente, a obrigação de estar permanentemente à disposição da empresa (e do algoritmo), a ausência de direitos e garantias.Num livro publicado este ano como a plataformização está transformando para muito pior o mundo do trabalho
. Por trás dos processos dos “sistemas automatizados”, diz ele, há um contingente cada vez maior de trabalhadores precários. Não são apenas os motoristas ou empregadores de aplicativos – mas também os dezenas milhões que atuam na captura (quase sempre sub-reptícia), de dados pessoais, no tratamento e uniformização destas informações (que em seguida alimentarão máquinas e sistemas), na moderação de conteúdos das redes sociais ou em atividades mais antigas e banais, como os serviços de assistência ao cliente.
A automação não remove o trabalho humano, diz Munn, mas elimina “o trabalhador pleno, com pagamento integral, com plenos direitos”
. O sistema não almeja o “fim do trabalho”, e sim “submissão total dos assalariados às plataformas e à inteligência artificial”. Por isso, “a precarização não é mero acidente”.